Friday, November 17, 2006

Partiu-se

Fui hoje confrontada com um grande problema. É sempre mau quando nos apercebemos de um trauma de infância que carregamos desde que somos pequeninos, mas pior ainda é sabermos que nunca seremos compreendidos. Esta é a minha derradeira tentativa de conseguir alguma compreensão por parte de todos os meus familiares e amigos.


Tudo isto aconteceu por causa da língua inglesa. Passo a explicar: estava hoje sentada ao lado do meu “law friend”, quando ele me pergunta se estava tudo bem e porque é que eu tinha chegado tão atrasada, e eu, passado longos minutos de uma luta brutal dentro do meu cérebro, tenho que lhe dizer “My house keys are missing in action”. Ora bem, imagino que qualquer mortal ache isto uma frase perfeitamente normal (especialmente se o mortal associar a frase à minha pessoa), e sendo assim é quase incompreensível porque é que eu tive que me debater com uma luta mental dentro do meu cérebro; eis o problema: a primeira frase que me veio
à cabeca foi “my keys lost themselves”, mas depois lembrei-me que seria mais algo como “my keys lost itlselves”, e momentos depois devido ao falta de nexo das frases anteriores pensei na possibilidade “my keys are lost”, que acabou entretanto por culminar no “my keys are missing in action” dado que era a única frase que, apesar de pouco, faria algum sentido. A frustração a este ponto era tanta, que passei o resto da aula a pensar nas origens desta minha falta de vontade de admitir que tinha acabado de fazer asneira (ou neste caso de causar a minha própria falência se se verificar que tenho de ir fazer outras chaves), queria descobrir o facto que me tinha levado a não ser capaz de dizer simplesmente “I lost my keys”.

Eis a conclusão:
Partiu-se.
Exactamente, a minha primeira falha em termos de admissão de culpa começou, nem mais nem menos do que com partiu-se.
Andava eu na pré primária, quado a minha professora me chamou para ir pintar (e eu não percebo porque é que ninguém percebe que quando alguém aos cinco anos se recusa a fazer alguma coisa como pintar é mesmo porque não tem qualquer vocação e não deve ser forçado...enfim), e eu, como na altura ainda não possuia poder de argumentaçao algum, lá fui. Foi portanto o sol amarelo que arruinou o meu dia: quando peguei no frasco de tinta, ele partiu-se no momento em que atingiu o solo. “Vai chamar a Tia Graciosa e pede-lhe uma esfregona para limpar isso”. Ora bem, como a “Tia Graciosa” (que, acreditem, na altura para mim era tudo menos Graciosa) estava no outro lado da escola, lá fui eu o caminho todo a pensar como é que ia fazer semelhante coisa. Pelo que me lembro, quando lá cheguei a única coisa que me saiu da boca foi “o frasco de tinta amarela partiu-se!”, e depois claro que lá expliquei o facto de precisar de uma esfergona para ir limpar o bonito serviço. Tendo ido o caminho de regresso todo a ouvir como era uma coisa inoportuna, e desajeitada fazer-se algo como partir um frasco de tinta amarela (não sei o porquê da insistência no ser amarela, teria a côr feito diferença? Secalhar havia pouca tinta em “stock” e como tal a lei da oferta e da procura ditaria que seria mais caro...enfim, nada que a minha cabecinha com cinco anos pudesse ter chegado à conclusão). O traumatizante desta história foi que até a porta da sala, tendo ouvido semelhante menosprezo pela pessoa que tinha sofrido a tragédia, não fui capaz de confessar que tinha sido eu a fazer o disparate. Quando achei que, minutos depois, por já estar misturada com os meus colegas, e completamente anónima, já me tinha safado do pequeno incidente ouço uma voz por trás de mim a dizer “Com que então partiu-se?!”. E aí sim, senti-me muito muito muito, enfim, muito pequenina.


A partir daí foram umas atrás das outras, o video “estragou-se” porque engoliu uma cassete ao contrário (algarve, uns meses depois, em casa de uns amigos dos meus pais), a televisão “partiu-se” (não sei bem quando em cascais, mas pegou porque eu podia ter sofrido um acidente grave pelos vistos), o passe do autocarro “perdeu-se” (macau, mês de fevereiro quando eu tinha 10 anos – e perdeu-se mesmo porque no mês seguinte a carteira com o passe caiu-me em cima da cabeça aquando das arrumaçoes semestrais), e, quase todas as semanas os fones estragam-se misteriosamente. Enfim...acho que admitir tanto disparate é demais para mim...é um peso que tenho de carregar comigo desde aquele dia.

Também tenho um trauma de infância caramba!, não posso ser compreendida?

Hoje foi um dia de más recordações, ainda sem chaves.

2 comments:

Anonymous said...

Gostei! Afinal és "autora" de todos os teus actos, "bons ou maus"...
O pior é ter de mandar fazer outras chaves (enquanto não encontras as que perdeste!!!!)
Será tique de génio?

El-Gee said...

Inteligente, sincero, lúcido, brilhante, divertido, curioso.

Apaixonante.