Imagino-te sentada dentro do teu VW, parada no meio de uma praça (como no meu Cinema Paraíso!), rodeada de amigos que se reuniram para ver o teu filme. Ficas ali sentada a olhar para a tela, e como te deves ter rido quando me viste aparecer de calças brancas no teu funeral. Deves ter dito: “aquela é a minha neta, a de calças brancas!”. E toda a gente se riu contigo da minha infeliz escolha de vestimenta. Imagino-te a olhar para a tela e a pensares como eu é que eu conhecia toda aquela gente a quem dei beijos e abraços (e com alguns até tive longas conversas!), não fazias ideia que eu que sempre vivi longe tinha assim tão grandes conhecimentos familiares, só para depois te aperceberes que eu não fazia ideia de quem eram todos aqueles beijos e abraços. Educaste-me bem, tu que sabias sempre fazer sala.
Imagino-te a olhar para a tela e a perguntares-te porquê tanta conversa mórbida sobre quem está enterrado onde, mas depois começas tu a pensar, e também não fazes ideia. É um autentico quebra-cabeças. Um passatempo interessante. Um tique nervoso como outro qualquer! E só mesmo os teus amigos é que te conseguem esclarecer quem está onde, porque nós aqui em baixo ainda não conseguimos descobrir.
Imagino-te a olhar para a tela e a ficares confusa de como ainda se lembravam do que tinhas dito sobre “o que querias vestir no dia em que morresses”. Ficas confusa porque estas aí tão confortavelmente sentada que não percebes como é que nós cá em baixo estamos indignados com o facto de te terem vestido uma roupa diferente. Será que não percebem que já não és tu? E os teus amigos estão também confusos certamente (afinal de contas passaram todos pelo mesmo). Mas para que saibas, estavas muito bonita. É nesse momento que olho para ti, e imagino que ficas tu também surpreendida com o terem posto um terço na tua mão, nenhuma de nós as duas te conheceu muito religiosa. Mas quanto a isso, ninguém pareceu confuso nem supreendido.
Imagino-te a olhar para a tela e a veres como me fez confusão ter de te tocar assim fria, morta. E aí tentas explicar-me que já não és tu e que não faz diferença que eu nâo consiga dar-te beijos ou fazer-te festas, porque tu já não sentes. Eu percebi, e senti-me melhor.
Imagino-te a olhares para a tela e veres todas as flores sob a campa, e ficares feliz porque está tudo a acabar – já estavas cansada de tanta atenção, e nunca tiveste muita paciência para filmes. E está tudo bonito, e branquinho, e tu já estás no teu sítio.
E no fim de tudo, a última coisa que vês somos todos sentados à mesa do café Velasquez, exaustos depois de termos de te deixar.
Eu olho para ti e sorrio. Afinal, sou eu a única que sei que estás aí, sentada algures a ver este mesmo filme.
E no meu mundo, talvez não no teu,
o Tótó aparece só mesmo para olhar para cima e dizer:
“Alfredo, es belissimo!”
1 comment:
Que descrição!Cada palavra criou uma imagem na minha cabeça.
Dói muito. Vai doer sempre. Mas também sabemos que vão estar sempre lá, naquele sítio.
Costumo dizer que o anjos da guarda são como os médicos de familia. Apesar de todos terem direito... existe sempre falta. Nós já temos.
Beijinho grande
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